Tipos de Policiamento: O Policiamento Tradicional/Profissional
- CrimiThink
- 18 de ago. de 2020
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As práticas desempenhadas pelas forças polícias constituem o aspeto funcional do seu trabalho, podendo ser designadas por modelos ou tipos de policiamento. Estes tipos de policiamento não são estáticos ou puros, acabando por não serem mutuamente exclusivos e por transportarem entre si elementos ou dimensões de modelos de policiamento anteriores.
Um tipo de policiamento pode ter variações de país para país, motivado, por exemplo, pelas características dos diferentes Estados. Para além das mudanças espaciais, os tipos de policiamento também sofrem mutações temporais, adaptando-se ao contexto e à realidade que se vive em determinada época temporal, como é o caso das alterações políticas.
A literatura referente aos tipos de policiamento é vasta e complexa e emerge sobretudo dos países anglo-saxónicos, podendo existir inúmeros tipos de policiamento.
Neste post damos início a uma série de publicações sobre 5 dos mais desenvolvidos tipos de policiamento, começando por abordar aquele que ainda hoje é conhecido por ser o "modelo padrão" de policiamento, o Policiamento Tradicional/Profissional, um tipo de policiamento nascido nos EUA em meados de 1930, e que ainda hoje influencia a forma de atuação das forças policiais a nível mundial.

Contextualização
O início do século XX nos EUA é palco de uma série de problemas na polícia americana. Denominada como a era política do policiamento por Kelling & Moore (1988), esta é uma época marcada por elevados índices de corrupção na polícia, onde muitos políticos usavam a sua influência para condicionar a atividade das forças policiais. Por este motivo, surgiam problemas de liderança nas forças de segurança, uma vez que os líderes serviam não os interesses da instituição, mas sim os interesses políticos. É também uma época marcada pela elevada discricionariedade dos agentes policiais, não existindo critérios rigorosos de atuação, pelo que, consequentemente, a lei não era aplicada de forma uniforme, mas antes diferenciada. Depois, os baixos salários auferidos pelos agentes policiais aumentavam a corrupção, uma vez que os polícias procuravam obter rendimentos a partir de outras vias como a troca de favores (Trojanowicz & Bucqueroux, 1990).

Procurando enfrentar estes problemas, em 1929 foi criado nos EUA a National Commission on Law Observance and Enforcement, que foi incumbida de proceder à reforma da polícia norte-americana (Kelling & Moore, 1988). Esta reforma foi marcada pela implementação de diversos princípios que mudaram a essência desta polícia, nomeadamente visando:
Tornar a missão principal da polícia o controlo do crime.
Independência/autonomização da polícia, afastando-a, na medida do possível, do poder político;
O recrutamento de novos agentes passou a seguir critérios de seleção mais rigorosos, de modo a que a polícia fosse representada por agentes mais competentes;
Melhor formação de todos os agentes para aumentar o grau de profissionalismo no desempenho das funções;
Aumento dos salários, numa tentativa de reduzir os casos de corrupção;
Implementação e utilização dos mais recentes meios tecnológicos, como é o caso do rádio, o automóvel, bases de dados, armas, entre outros (Kelling & Moore, 1988; Moore, Trojanowicz & Kelling, 1988; Monkkonen, 1992).
Deste modo, surge então o Policiamento Tradicional/Profissional, que passou a dominar o policiamento nos EUA, tendo sido posteriormente adotado noutros países após a 1ª e 2ª Guerra Mundial, passando a englobar as seguintes características:
Patrulhas motorizadas aleatórias. A patrulha a pé, caracterizada como obsoleta e ineficiente foi abandonada. Foram adotadas patrulhas em carros de modo a aumentar a área patrulhada, o que dava uma ideia de omnipresença da polícia, dissuadindo a criminalidade e dando um maior sentimento de segurança aos cidadãos;
Resposta rápida às chamadas de serviço. O raciocínio é que a resposta rápida dos agentes pode levar à apreensão de suspeitos, principalmente em flagrante delito. No entanto, a resposta rápida às solicitações depende da comunicação do crime, do tempo de passagem da linha policial que recebe as chamadas e o tempo de viagem da patrulha;
Ações essencialmente reativas. Procura-se proteger a comunidade dos criminosos, descurando-se a prevenção criminal;
A eficácia da polícia é medida pelo número de crimes resolvidos e pelo tempo de resposta às ocorrências;
Intervenção limitada à aplicação da lei, sem preocupação com crimes conexos. Outros tipos de problemas comunitários passaram a ser identificados como “serviço social”, sendo criadas unidades especiais para resolver essas questões

Aumento da especialização profissional, uma vez que determinadas tarefas policiais tornam-se responsabilidade de indivíduos especializados na execução dessa tarefa, privilegiando-se a experiência num tipo específico de trabalho;
O agente policial é visto como alguém imparcial e que se relaciona com os cidadãos em termos profissionalmente neutros e distantes. Quanto ao papel dos cidadãos no controlo do crime, este foi reduzido ao de um "ativador" dos serviços policiais, chamando a polícia quando um crime ocorre e sendo boas testemunhas, se solicitados a depor;
Aumento do tamanho das agências policiais. Desde sempre houve a presunção entre políticos e público em geral de que um maior número de agentes policiais significa um aumento na segurança da comunidade;
Aplicação das estratégias genéricas de redução do crime (patrulhas aleatórias, resposta rápida, aumento do nº de agentes) em toda a jurisdição, independentemente do nível do crime, da natureza do crime ou de outras variações possíveis (Spelman & Brown, 1984; Kelling & Moore, 1988; Moore et al., 1988; National Research Council, 2004a).
Críticas
Em retrospetiva, a estratégia do Policiamento Tradicional era atrativa. Se a polícia pudesse concentrar esforços nas patrulhas aleatórias e na apreensão de criminosos, então poderiam ser mais eficazes do que se tivessem de reunir esforços na resolução de outros problemas (Kelling & Moore, 1988).
De facto, a estratégia de reforma foi uma estratégia bem-sucedida para a polícia durante o período relativamente estável das décadas de 1940 e 1950. No entanto, as mudanças sociais das décadas de 1960 e 1970 (i.e., migração de minorias para as cidades, população mais jovem, aumentos no crime e no medo, etc.) criaram condições instáveis (Kelling & Moore, 1988).
Deste modo, no final das décadas de 1960 e 1970 o Policiamento Tradicional teve dificuldades, sendo alvo de diversas críticas, sobretudo apontadas por Kelling & Moore (1988):
Primeiro, a polícia não conseguiu melhorar as estatísticas no combate ao crime. Apesar dos grandes aumentos no tamanho dos departamentos policiais e nas despesas com novas formas de equipamento, a polícia não correspondeu às expectativas sobre a capacidade de controlar o crime ou impedir o seu aumento. Ficou marcada por ser uma simples correção temporária para problemas crónicos.
Em segundo lugar, o distanciamento entre polícia e cidadão resultou num divórcio entre as forças policiais e a população, causando um mal-estar e atrito constante. A completa motorização das patrulhas policiais isolou os polícias das comunidades. A polícia interagia com os cidadãos principalmente nas situações em que um crime era cometido, tornando os encontros frequentemente negativos, aumentando a hostilidade, especialmente em comunidades minoritárias, e reforçando estereótipos negativos de ambas as partes.
Em terceiro lugar, o facto de as intervenções policiais serem limitadas à aplicação da lei descurava a prevenção de outros crimes e de problemas subjacentes.
Por último, a intervenção rápida, numa procura de aumentar as detenções em flagrante delito, também mostrou ser ineficaz, uma vez que o número destas detenções não aumentou, como poderemos comprovar na seguinte secção.

O que diz a evidência?
Tendo em conta que o surgimento deste tipo de policiamento e os seus pressupostos remontam à década de 1930, seria de esperar uma vasta variedade de evidência empírica. No entanto, a grande maioria da investigação debate apenas a eficácia das patrulhas aleatórias e a rápida resposta às solicitações de serviço.
Relativamente à patrulha preventiva aleatória as evidências que apoiam esta ferramenta de combate ao crime são muito fracas. Os principais estudos que sugerem que a patrulha preventiva aleatória pode ter um impacto no crime utilizaram desenhos de investigação quasi-experimentais de fraca qualidade.
Por exemplo, Press (1971) constatou que, através de um aumento de 40% das patrulhas preventivas em Nova Iorque no período entre 1963 a 1967, se verificou uma diminuição na criminalidade. No entanto, como o próprio autor refere, não é possível estabelecer com grande confiança um nexo causal entre o aumento das patrulhas aleatórias e a diminuição no crime. Mais tarde, Dahmann (1975) avaliou a eficácia de 3 projetos de patrulha policial em Colorado, Ohio e Missouri, em crimes de homicídio, violação, agressão agravada, furto e assalto. O autor concluiu que em cada um dos projetos examinados, todos os tipos de crime ocorreram menos vezes durante o período de maior atividade policial do que em situações anteriores na mesma área. Não obstante, os problemas metodológicos mantêm-se.
Como crítica às patrulhas preventivas aleatórias, o estudo mais influente e conhecido nesta área foi o The Kansas City Preventive Patrol Experiment (Kelling, Pate, Dieckman & Brown, 1974). Neste estudo, realizado em Kansas City durante 1972 e 1973, procedeu-se a um aumento da patrulha preventiva em cinco áreas da cidade, reduziu-se em cinco outras e manteve-se a patrulha nos níveis padrão em outras cinco. Através de inquéritos de vitimização, taxas de criminalidade, inquéritos de delinquência autorrevelada e métodos observacionais, o estudo não encontrou diferenças significativas entre os três tipos de patrulhamentos em relação ao crime, desordem ou medo, levando os investigadores a concluir que não há evidências de que a patrulha preventiva influencie significativamente qualquer uma dessas medidas centrais dos resultados do policiamento. Ainda assim, embora este seja um estudo de referência, a validade das conclusões foi contestada devido a falhas metodológicas (CEBCP, 2020).
De igual modo, a resposta rápida às chamadas de serviço também parece não ser eficaz na redução e controlo do crime. A melhor evidência sobre a eficácia da resposta rápida vem de dois estudos (Kansas City Police Department, 1978; Spelman & Brown, 1984). Em cinco cidades examinadas nestes dois estudos, em média, os cidadãos demoram cerca de 5 minutos a ligar à polícia, o que dá aos infratores tempo suficiente para escaparem.

Mais recentemente, o Departamento de Polícia de Seattle (2014) realizou um estudo onde concluiu que as rápidas respostas a chamadas de emergência (7 ou menos minutos) adotadas num plano de policiamento em 2008, não estavam fortemente associadas à apreensão de suspeitos, embora seja útil em determinadas situações de emergência (CEBCP, 2020). Estes resultados levam a crer que uma melhoria na rapidez com que a polícia chega à cena do crime provavelmente não fará muita diferença na probabilidade de prender o suspeito, pois o tempo de comunicação do crime é o fator que tem maior implicação no sucesso de uma detenção.
De modo geral, os estudos que avaliam a eficácia do Policiamento Tradicional concluíram que a evidência que apoia este modelo é fraca, mostrando que são poucos os benefícios na prevenção criminal e redução do medo do crime. No entanto, concluir que não há evidência cientifica suficiente para apoiar uma política não significa necessariamente que a política seja totalmente ineficaz. Dada a importância contínua deste modelo, que continua a ser aplicado, é surpreendente que os estudos realizados ainda utilizem fracas metodologias de investigação, sendo que as principais evidências já se encontram algo datadas (Weisburd & Eck, 2004).
Curiosamente, embora essas avaliações levantem sérias dúvidas sobre a eficácia das práticas policiais tradicionais e, como resultado, tenham sido muito contestadas, poucas replicações foram realizadas. Os resultados da investigação foram aceites como verdadeiros, apesar das críticas metodológicas, e tornaram-se a base para uma profunda reflexão sobre o papel da polícia no controlo e prevenção do crime na década de 1980 (National Research Council, 2004b).
Desta forma, se temos um modelo de policiamento que não produz os resultados desejados, começam a surgir novas ideias. Isto não significa que o Policiamento Tradicional seja abandonado por completo, mas que surja um equilíbrio entre formas de atuar. Este conjunto de críticas levou, no final da década de 70, à emergência de novos modelos teóricos com características diferentes, com novas visões sobre o modo de atuação da polícia e que teremos oportunidade de desenvolver oportunamente noutros artigos.
Referências Bibliográficas
CEBCP (2020). What Works in Policing?: “Standard Model” Policing Tactics. Disponível em: https://cebcp.org/evidence-based-policing/what-works-in-policing/research-evidence-review/standard-model-policing-tactics/?fbclid=IwAR0_SDFPSM_2pAkRE6bPFbU2MmYhRswHy9siwGT7MVwmieAcBWeyVTaWsuI
City, K. (1978). Response time analysis. National Institute of Law Enforcement and Criminal Justice, Law Enforcement Assistance Administration, US Department of Justice.
Dahman, J. (1975). Examination of Police Patrol Effectiveness: High-Impact Anti-Crimi Program. McClean, VA: Mitre Corporation.
Kelling, G. L., & Moore, M. (1988). From Political to Reform to Community: The Evolving Strategy of Police." In Community Policing: Rhetoric or Reality? Eds. Jack R. Greene and Stephen D. Mastrofski. (pp 3-25) New York, NY: Praeger Publishers.
Kelling, G. L., Pate, T., Dieckman, D., & Brown, C. E. (1974). The Kansas City preventive patrol experiment. Washington, DC: Police Foundation.
Monkkonen, E. H. (1992). History of urban police. Crime and justice, 15, 547-580.
Moore, M. H., Trojanowicz, R. C., & Kelling, G. L. (1988). Crime and policing (No. 2). US Department of Justice, National Institute of Justice.
National Research Council (2004a). Effectiveness of police activity in reducing crime, disorder and fear. Fairness and effectiveness in policing: The evidence, 217-251.
National Research Council (2004b). Explaining police behavior: Organizations and context. W. Skogan & K. Frydl, Fairness and effectiveness in policing: The evidence, 155-216.
Press, S. J. (1971). Some effects of an increase in police manpower in the 20th precinct of New York City.
Spelman, W., & Brown, D. K. (1984). Calling the police: Citizen reporting of serious crime. US Dept. of Justice, National Institute of Justice.
Trojanowicz, R., & Bucqueroux, B. (1990). Community policing. Anderson, Cincinnati, OH.
Weisburd, D., & Eck, J. E. (2004). What can police do to reduce crime, disorder, and fear?. The Annals of the American Academy of Political and Social Science, 593(1), 42-65.
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