Será que a maior utilização da pena de prisão é uma medida eficaz na redução do crime?
- CrimiThink
- 21 de out. de 2020
- 9 min de leitura
Algo que se costuma popularmente ouvir quando há um aumento (ou aparente aumento) do crime é que "as penas a ser aplicadas aos criminosos são demasiado brandas", não exercendo um verdadeiro efeito dissuasor, ou então que "a maioria comete crimes porque sabem que não vão presos". Especificamente, tende a ser suportada a ideia de que aquilo que é necessário é que haja um aumento do recurso à pena de prisão e/ou da sua severidade por forma a contrariar esse aumento do crime e se recuperar a estabilidade.

Politicamente, a principal estratégia levada a cabo por alguns governos (por exemplo, os EUA), sobretudo a partir dos anos 80, também tem sido a de aumentar a punitividade e o recurso à pena de prisão como forma de tentar prevenir o crime (Zimring & Hawkins, 1995).

Mas afinal qual será o verdadeiro impacto da utilização da pena de prisão no crime?
Antes de mais, precisamos de perceber de que forma é que a pena de prisão pode impactar o crime. Então:
Primeiro, pode servir como mecanismo de dissuasão geral na medida em que a ameaça da aplicação da pena pode ter um efeito dissuasivo geral na população, reduzindo as taxas de crime. Os defensores da teoria da dissuasão tendem a argumentar que quanto mais severa a pena, maior o seu efeito dissuasivo geral.
Pode ter um efeito dissuasivo específico sobre o criminoso uma vez que, ao ser aplicada uma pena de prisão efetiva, o delinquente irá, eventualmente, abster-se de cometer futuros crimes devido aos profundos impactos negativos da pena de prisão;
Pode servir como mecanismo de reabilitação, procurando intervir sobre as necessidades criminógenas do indivíduo. Neste artigo não iremos aprofundar este tema por acharmos merecer o destaque de outro artigo. Por agora digamos apenas que o tratamento reabilitativo cognitivo-comportamental dirigido às necessidades criminógenas tem demonstrado efeitos positivos, ainda que variáveis, quer em contexto prisional, quer na comunidade, embora haja algumas meta-análises que registem um maior efeito do tratamento na comunidade (Lipsey & Cullen, 2007).
Por último, a prisão pode servir como mecanismo de incapacitação, uma vez que, estando um indivíduo preso não tem possibilidade de cometer novos crimes;

O que diz a evidência?
Dissuasão geral
Comecemos então pelos efeitos da pena enquanto mecanismo de dissuasão geral. E aqui falaremos do efeito dissuasivo da punição em geral, não exclusivamente da pena de prisão. Os resultados dos estudos têm demonstrado grande variabilidade, o que se deve em parte não só à sua qualidade metodológica, mas também às características dos autores (Dölling, Entorf, Hermann & Rupp, 2009; Pratt, Cullen, Blevins, Daigle & Madensen, 2006).
Por um lado é inegável que o sistema de justiça exerce uma certa influência sobre a comunidade. Caso não houvessem consequências nem risco associados ao cometimento de crimes uma considerável parte da população cometeria esses crimes (Doob & Webster, 2003). No entanto, é preciso perceber que aspeto da punição tem um maior poder dissuasivo. Ou seja, quando se procura perceber o efeito dissuasivo de uma sanção após o cometimento deve-se ter em conta 3 variáveis:
A severidade dessa sanção;
A celeridade com que a sanção é aplicada;
A certeza de que se seguirá uma sanção após o cometimento do crime.
O que Pratt et al. (2006) vieram a verificar numa meta-análise sobre o suporte empírico à teoria da dissuasão foi que, no seu conjunto, os efeitos destas variáveis sobre o crime eram bastante fracos. A única variável que significativamente tinha um maior poder preditivo era a certeza da punição, especialmente tendo em conta crimes de colarinho branco. Ou seja, isto significa que, mais importante do que a sanção ser severa ou de rápida aplicação, é necessário que não haja a sensação de impunidade para que haja um maior efeito dissuasor. Outro resultado interessante que os autores verificaram foi que as sanções informais (por exemplo, os sentimentos de vergonha, a rejeição pela família, a perda de emprego) têm um papel mais decisivo na dissuasão do que as sanções formais (ou seja, prisão, multa, etc.)
Uma meta-análise de Dölling et al. (2009) também encontrou alguns resultados semelhantes. Os autores verificaram que, na generalidade, ainda que não sendo um efeito universal, a probabilidade de haver um efeito dissuasivo da punição é maior que a sua inexistência. No entanto isto depende do tipo de crime, tendo-se verificado um maior efeito dissuasivo da punição em relação a crimes contra a propriedade e pequena criminalidade (por exemplo, condução sob o efeito de álcool) comparativamente com crimes violentos, o que pode ser resultado da maior espontaneidade e emocionalidade envolvida neste últimos. Além disso, os autores também verificaram que mais importante que a severidade da punição era o risco da deteção e consequente punição (i.e., a certeza) e que as sanções informais tinham um maior efeito dissuasivo que as sanções formais.

Dissuasão específica
Como já foi mencionado, no âmbito da dissuasão específica estamos interessados em saber se a punição é eficaz na redução da reincidência. E aquilo que a melhor evidência tem indicado é que a mera punição não tem um efeito no crime, podendo mesmo ter efeitos contrários ao desejado (Lipsey & Cullen, 2007).
Por exemplo, uma meta-análise conduzida por Smith, Goggin & Gendreau (2002) verificou que as penas de prisão mais elevadas estavam associados a um aumento da reincidência de 3% em comparação com as penas de prisão mais baixas (N = 107 165) e que, quando ajustados os tamanhos de efeito ao tamanho da amostra, não havia qualquer diferença na taxa de reincidência entre a pena de prisão e as sanções na comunidade (N = 268 806). Aliás, caso se tenha apenas em conta os estudos metodologicamente mais fortes e quando ajustados os tamanhos de efeito (N = 28 456), a pena de prisão conduz a um aumento de 8% na taxa de reincidência quando comparada com o cumprimento de sanções na comunidade. Estes efeitos mantiveram-se significativos independentemente do nível de risco dos indivíduos.
Numa outra meta-análise Jonson (2010) verificou resultados semelhantes. Tendo em conta os estudos metodologicamente mais fortes e ajustando os tamanhos de efeito ao tamanho da amostra dos estudos (N = 148 737), a autora verificou que as penas privativas da liberdade comparativamente com as sanções na comunidade aumentavam em 5% a taxa de reincidência e que as penas de prisão mais longas aumentavam em 3% o nível de reincidência comparativamente com as penas de prisão mais curtas (N = 45 588). Novamente, estes resultados mostraram-se significativos independentemente do nível de risco dos indivíduos e das questões metodológicas.
Mais recentemente, Villettaz, Gillieron & Killias (2015) voltaram a confirmar meta-analiticamente que, tendo em conta apenas os estudos randomizados e as experiências naturais, as penas privativas da liberdade não têm melhores efeitos na redução da reincidência do que o cumprimento de penas na comunidade.
Em suma, contrariamente ao que os defensores da teoria da dissuasão argumentam, não só a pena de prisão não demonstra ser mais eficaz na redução da reincidência (podendo mesmo acontecer o inverso) como a maior severidade das penas de prisão pode estar associada a um aumento da reincidência criminal.

Incapacitação
Para avaliar da eficácia da prisão enquanto mecanismo de incapacitação procura-se avaliar a quantidade de crimes evitados pelo facto do indivíduo estar preso e que, caso não o estivesse, ele iria possivelmente cometer ao longo da carreira criminal.
Acaba por ser algo evidente que estando alguns criminosos presos, algum crime irá ser evitado. No entanto, existem algumas dúvidas sobre as melhores estimativas da quantidade de crime reduzido e limitações sobre qual a abordagem mais correta e eficaz para fazer estas medições (Piquero & Blumstein, 2007). Por exemplo, alguns estudos, sobretudo os elaborados no campo da Economia, encontram grandes efeitos da utilização da prisão na redução do crime, no entanto, uma grande parte dos estudos simplesmente compara o número de crimes prevenidos pelo facto do indivíduo estar preso com o não fazer nada ao indivíduo. Ora, obviamente que esta comparação faz pouco sentido porque a alternativa à prisão seria uma pena não privativa da liberdade. Deste modo seria mais importante perceber se o crime é mais evitado com o indivíduo recluído do que em cumprimento de uma medida na comunidade (Cullen, Jonson & Nagin, 2011).

Outro aspeto importante nesta análise é o nível de risco que os indivíduos apresentam e a etapa em que se encontram na sua carreira criminal. A evidência é consistente em apontar que existe uma relação negativa entre a idade o crime (e.g., Farrington, 1986). Laub & Sampson (2003, p. 90 cit. in Piquero & Blumstein, 2007) verificaram que na amostra do seu estudo longitudinal o tempo médio de uma carreira criminal era de 25,6 anos para toda a criminalidade, de 9,2 anos para crimes violentos e de 13,6 anos para os crimes contra a propriedade. Assim, para ofensores que se encontrem numa fase adiantada da sua carreira criminal, que sejam mais velhos e consequentemente possam ter um menor risco de reincidência não parece ser custo-efetivo utilizar a pena de prisão de forma generalizada como forma de reduzir a criminalidade uma vez que o risco de reincidência é bastante baixo.

Em suma, aquilo que evidência parece indicar é que a incapacitação de ofensores de alto risco pode ser útil na redução do crime (Durlauf & Nagin, 2011; Piquero & Blumstein, 2007). No entanto, e volto a mencionar, justificar a incapacitação de todos os ofensores como medida efetiva para a redução do crime pode ser contraproducente pois, como já vimos, podemos estar a misturar ofensores com diferentes sensibilidades e especificidades num mesmo contexto e contribuir indiretamente para um maior risco de reincidência.
Conclusão
Respondendo à pergunta inicial, será que podemos dizer que existe um efeito positivo da utilização da pena de prisão no crime? Tendo em conta a evidência disponível não podemos afirmar que assim o seja.
Enquanto mecanismo de dissuasão geral existem outros fatores muito mais importantes do que o tipo de pena a aplicar. Aliás, como ficou demonstrado, fatores como a certeza de uma sanção, as normas individuais internalizadas e as sanções informais são muito mais importantes na redução do crime.
No âmbito da dissuasão específica também verificamos que não existe um benefício da utilização da prisão em comparação com penas não privativas da liberdade na redução do crime, independentemente do risco dos ofensores, podendo, na pior das hipóteses, a pena de prisão ser mesmo criminógena.
Por último, embora a prisão possa ser útil como medida incapacitante de alguns ofensores, não deve justificar o encarceramento da maioria dos ofensores.

Tal como sublinham Durlauf & Nagin (2011) é perfeitamente possível reduzir conjuntamente o crime, os custos associados à prisão e as taxas de encarceramento. É necessário é que as políticas comecem a tornar-se mais baseadas na evidência, possibilitando também uma gestão mais eficaz de recursos. Isto pode fazer-se de várias formas. Fornecendo mais e melhores recursos para as polícias de modo a aumentar os riscos associados ao cometimento do crime, diminuindo as sensações de impunidade e tornando as consequências do crime mais certas e céleres, investindo na melhoria de qualidade dos serviços de cumprimento de medidas na comunidade e dos serviços de reinserção, apostando em mecanismos de prevenção situacional do crime, e muito mais.
Parece-nos pertinente terminar este artigo com duas citações de Cullen et al. (2011, p. 50, 58), que fazem uma analogia bastante esclarecedora com os hospitais americanos e que pode ajudar a perceber o porquê de o argumento da utilização da prisão como positiva na redução do crime ser falacioso. Dizem os autores:
"Como sociedade, estamos preocupados em não enviar pacientes para os hospitais quando eles possam ser tratados de forma eficaz na comunidade. As estadias nos hospitais são caras e acarretam o risco de exposição a infeções. Como tal, o atendimento hospitalar deve ser reservado para os pacientes de maior risco, que não podem ser tratados noutro lugar. Além disso, para os que são enviados para o hospital, todas os passos devem ser tomados para garantir que os efeitos iatrogénicos (ou seja, adversos) sejam evitados.
(...)
Imagine-se um sistema médico no qual pacientes muito doentes e levemente doentes são hospitalizados sem praticamente nenhuma ideia se eles irão sair curados, com uma doença terminal ou inalterados. (...) Aqueles que estão a institucionalizar pacientes doentes afirmam ter um "feeling" de que a hospitalização tem efeitos curativos. Afinal, eles conhecem um monte de pacientes que regressaram à comunidade e que não voltaram a ficar doentes. Eles não precisam de consultar nenhum estudo científico para saber que os hospitais reduzem a reincidência de doenças.
Se esta situação ocorresse, o público chamaria os médicos de charlatões, abriria processos intermináveis por imperícia e exigiria estudos para provar quais intervenções eram seguras ou inseguras. Mas, se substituirmos a palavra “aprisionamento” por “hospitalização” no parágrafo anterior, estaríamos a descrever aproximadamente o uso atual das prisões e da política correcional."
Referências Bibliográficas:
Cullen, F. T., Jonson, C. L., & Nagin, D. S. (2011). Prisons do not reduce recidivism: The high cost of ignoring science. The Prison Journal, 91(3_suppl), 48S-65S.
Doob, A. N., & Webster, C. M. (2003). Sentence severity and crime: Accepting the null hypothesis. Crime and justice, 30, 143-195.
Dölling, D., Entorf, H., Hermann, D., & Rupp, T. (2009). Is deterrence effective? Results of a meta-analysis of punishment. European Journal on Criminal Policy and Research, 15(1-2), 201-224.
Durlauf, S. N., & Nagin, D. S. (2011). Imprisonment and crime: Can both be reduced?. Criminology & Public Policy, 10(1), 13-54.
Farrington, D. P. (1986). Age and crime. Crime and justice, 7, 189-250.
Jonson, C. L. (2010). The impact of imprisonment on reoffending: A meta-analysis (Doctoral dissertation, University of Cincinnati).
Lipsey, M. W., & Cullen, F. T. (2007). The effectiveness of correctional rehabilitation: A review of systematic reviews. Annu. Rev. Law Soc. Sci., 3, 297-320.
Piquero, A. R., & Blumstein, A. (2007). Does incapacitation reduce crime?. Journal of Quantitative Criminology, 23(4), 267-285.
Pratt, T. C., Cullen, F. T., Blevins, K. R., Daigle, L. E., & Madensen, T. D. (2006). The Empirical Status of Deterrence Theory: A Meta-Analysis.
Smith, P., Gendreau, P., & Goggin, C. (2002). The effects of prison sentences and intermediate sanctions on recidivism: General effects and individual differences. Ottawa, ON: Solicitor General Canada.
Villettaz, P., Gillieron, G., & Killias, M. (2015). The Effects on Re‐offending of Custodial vs. Non‐custodial Sanctions: An Updated Systematic Review of the State of Knowledge. Campbell Systematic Reviews, 11(1), 1-92.
Zimring, F. E., & Hawkins, G. (1995). Incapacitation: Penal confinement and the restraint of crime. Studies in Crime and Public Policy.
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