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"Superpredadores": dos pânicos morais, das previsões falhadas e das falácias de autoridade

  • Foto do escritor: CrimiThink
    CrimiThink
  • 7 de dez. de 2020
  • 7 min de leitura

Atualizado: 11 de dez. de 2020


Em 1995, em virtude do aumento das taxas de homicídios cometidos por adolescentes em meados dos anos 80 e princípio dos anos 90 nos EUA e tendo em conta o seu trabalho desenvolvido junto das forças de segurança e em meio prisional, o académico e cientista político John Dilulio Jr. cunhou o termo “superpredadores” num artigo para a revista The Weekly Standard. Neste artigo, entre outros aspetos, Dilulio apontava o seu ponto de vista sobre o aumento da criminalidade juvenil, identificando uma série de características da geração de jovens de 80 e 90 que os distinguia claramente das gerações anteriores.


Segundo a teoria proposta por Dilulio e colegas (1996), o aumento da violência associada à criminalidade juvenil dever-se-ia a uma nova geração de jovens, completamente desprovidos de empatia e moralidade, extremamente impulsivos e indiferentes à punição, e que seriam resultado de uma série de mudanças sociais e culturais na sociedade americana, resultando num clima de pobreza moral no qual estes "superpredadores" proliferavam.


Dilulio e colegas caracterizariam estes jovens da seguinte forma:


"Based on all that we have witnessed, researched and heard from people who are close to the action," … "here is what we believe: America is now home to thickening ranks of juvenile 'super-predators' - radically impulsive, brutally remorseless youngsters, including ever more pre-teenage boys, who murder, assault, rape, rob, burglarize, deal deadly drugs, join gun-toting gangs and create serious communal disorders" (Bennett, Dilulio, & Walters, 1996, p. 27).


Deste modo, extrapolando a partir de um estudo longitudinal realizado em Filadélfia (Wolfgang, Filio & Sellin, 1972/1987) que havia concluído que 6% dos jovens do cohort havia cometido mais de 50% dos crimes violentos, Dilulio apontava, no artigo da The Weekly Standard, para que o número de adolescentes sob reclusão nos EUA aumentasse 3 vezes mais até cerca do ano 2000, prevendo que, até 2010, houvesse cerca de 270 mil jovens delinquentes a mais do que em 1990. Além disso, noutra publicação, Dilulio apontava para que "até cerca de metade destes jovens superpredadores pudessem ser negros".


A ideia da existência de jovens "superpredadores" acabou por alcançar popularidade nos media e a narrativa acabou por ser reforçada por alguns investigadores e académicos criminólogos, apesar das críticas metodológicas e correções apontadas por outros (e.g., Zimring, 1998). O criminólogo James Fox prontamente reiterou o caráter urgente da situação, referindo que:


"[u]nless we act today, we're going to have a bloodbath when these kids grow up."


Deste modo, não demorou muito até que esta situação chegasse ao discurso político. Em virtude do clima de pânico alimentado pelos media e a necessidade de obter o apoio do público, a força metafórica do termo “superpredadores” justificou a implementação um pouco por todo o país de uma série de medidas “though-on-crime em relação aos delinquentes juvenis, sobretudo da comunidade afroamericana, que passaram a ser tratados criminalmente como adultos.

Além disso, a pressão sobre o sistema de justiça para não deixar estes jovens saírem ilesos e as ideias preconcebidas acerca do modo de atuação destes jovens (que eram vistos como indivíduos que atuavam em "alcateia") acabou por resultar numa série de injustiças e condenações “forçadas”, tal como a que os "Central Park Five", assim denominados pelos media, foram alvo e cuja história foi recentemente adaptada a minissérie pela Netflix ("When They See Us").

Entretanto, a “grande vaga” de delinquentes juvenis prevista por Dilulio nunca se chegou a concretizar. Em meados dos anos 90, as taxas de delinquência juvenil e as taxas de detenção por homicídio começaram a diminuir drasticamente, ainda que a população de jovens na comunidade estivesse a aumentar, o que por si só contrariava as previsões de Dilulio.


Prontamente se poderia pensar que esta redução do crime poderia estar associada ao aumento da severidade das políticas criminais direcionadas aos jovens. No entanto, a evidência existente não suporta este argumento. Aliás, os estados com as maiores diminuições das taxas de encarceramento juvenil entre 1997 e 2007 registaram diminuições ligeiramente superiores à média nacional nas taxas de delinquência juvenil, não havendo evidência a suportar quer uma redução do crime devido ao aumento do recurso ao encarceramento, quer a existência de um efeito dissuasor do aumento das penas.


Dilulio acabou por reconhecer publicamente o seu erro e pedir desculpa por todas as consequências associadas à utilização do termo e às previsões. Em 2012 chegou mesmo a subscrever um documento emitido ao Supremo Tribunal de Justiça dos EUA, que visava limitar a utilização da pena perpétua sem possibilidade de liberdade condicional em relação a jovens, e que identificava as falhas associadas à teoria de Dilulio, apresentando a evidência da ineficácia das medidas de justiça criminal tomadas à data.


Em nada o aumento da criminalidade juvenil se deveu a uma "nova geração" de jovens. Dilulio havia extrapolado conclusões sem controlar uma série de variáveis importantes na explicação do aumento da criminalidade juvenil.

A explicação mais provável para o aumento verificado residia no aumento da participação dos jovens em gangs violentos relacionados com o tráfico de droga, nomeadamente crack. Devido à falta de oportunidades, às dificuldades económicas e, consequentemente, à redução do controlo social informal, os jovens viam nestes gangs a sua oportunidade de obter reconhecimento, dinheiro e reputação. Por sua vez, os gangs viam nos adolescentes não só uma "mão-de-obra" mais barata e capaz de se escapar às sanções do sistema de justiça para adultos, como uma rebeldia e atitude disposta ao risco que lhes garantia um maior sucesso e os protegia da polícia. Dada a maior e fácil disponibilidade de armas de fogo e a disputa de território entre gangs, era comum que estes jovens transportassem armas para sua proteção e e para proteção da droga, acabando por se envolver frequentemente em tiroteios que muitas das vezes se revelariam fatais.

Já as reduções verificadas nos anos seguintes deveram-se sobretudo ao maior crescimento económico no país, aumentando as oportunidades de emprego para os jovens e reduzindo consideravelmente o desemprego, o que, consequentemente, acabou por reduzir as frustrações associadas às dificuldades económicas e melhorou a forma como o controlo social informal era exercido, à maior eficácia da polícia no controlo da criminalidade juvenil e na apreensão de armas por estes grupos, à menor disponibilização de armas em geral e às alterações verificadas nos mercados de droga, que progressivamente foram recrutando cada vez menos jovens, não só pelas condições mencionadas, mas pela diminuição de novos consumidores de crack.


Que lições se podem retirar?


Embora o problema da criminalidade juvenil fosse um problema sério nos EUA em meados dos anos 80 até meados dos anos 90, na altura em que Dilulio conotou o termo "superpredadores", já as taxas de delinquência juvenil se encontravam numa tendência descendente.


Apesar das extrapolações desmesuradas do estudo de Filadélfia (Wolfgang, Filio & Sellin, 1972/1987) e das evidências anedóticas que foi recolhendo, a força metafórica do termo "superpredadores" proporcionou a Dilulio um instantâneo reconhecimento e credibilidade da parte dos media e do poder político e do qual acabou por ser vítima. A Dilulio foi-lhe reconhecida a autoridade para prever algo que era de difícil previsão, ainda para mais não estando no controlo de uma diversidade de fatores.


A aparente urgência do problema e o pânico moral disseminado na sociedade fez com que se tivessem tomado medidas de política criminal orientadas em crenças e previsões de fracos alicerces, que acabaram por ter graves consequências no tratamento da criminalidade juvenil.


Deste modo, se poderemos retirar algumas lições para o futuro achamos que estas são as principais:

  1. Tratem-se humanos enquanto humanos. A ideia da existência de "superpredadores" não só não contribuiu para um melhor entendimento do problema, como moldou erradamente a consciência pública sobre quem eram estes jovens. Tal como animais selvagens, também eles não poderiam ser controlados, deste modo, e tendo em conta a sua orientação para o crime, a solução passaria por retira-los da comunidade. Este pensamento acabou por orientar políticas criminais e provocar enormes injustiças na vida de jovens que ainda se encontravam em pleno desenvolvimento.

  2. Nunca recorrer ao instinto de urgência. Por mais urgente que um problema pareça a urgência tende-nos a toldar a razão. Em vez disso questione-se, analise-se, recorra-se à melhor informação possível, àquela que é precisa e relevante. E então tome-se uma decisão, ponderada e informada.

  3. Evitem-se as previsões. O grande problema das previsões é que têm associado um grande grau de incerteza, especialmente no domínio das ciências sociais em que a imprevisibilidade é muito maior do que nas ciências exatas.

  4. Não se confie na forma como os media retratam um fenómeno. Os media tendem a enquadrar um fenómeno de forma mais dramática, precisamente porque têm como objetivo captar a atenção do maior número de pessoas. Chamar os jovens de "superpredadores" torna toda a situação muito mais dramática, criando a sensação na comunidade de que estes jovens possuem características animalescas. Nesta situação, os media foram os principais responsáveis por criar o medo e instalar o pânico na comunidade.

  5. Não se julge a validade de um argumento tendo em conta a posição de autoridade da pessoa que proferiu o argumento, mas tendo em conta a melhor evidência disponível. Os argumentos e as previsões de Dilulio foram reconhecidas e legitimadas não pelos fortes factos que apresentava, mas pela posição académica que ocupava. Além disso, não só falhou Dilulio, como falharam os restantes académicos que apoiaram as suas previsões. Para o cidadão comum este pode ser um grande desafio, uma vez que perante a sua incapacidade de refutar os argumentos pode haver a tendência à aceitação. Neste sentido, cabe também aos media reconhecer a necessidade de se dar voz ao contraditório. Apesar de terem havido críticos da metodologia de Dilulio o reconhecimento que lhes foi dado pelos media nunca se comparou com o dado a Dilulio.

  6. Quando estivermos errados, saibamos reconhecer o erro e trabalhemos para compensar o erro. Como bom académico, Dilulio deveria não só ter sido capaz de reconhecer as limitações e as dificuldades associadas às suas previsões bem como ter sido cauteloso na escolha das palavras. Não o fez, mas felizmente foi capaz de reconhecer os seus erros e envolver-se ativamente na mudança.

Terminamos assim esta publicação, esperançosos de que tamanhos erros não voltem a ser cometidos. Cabe-nos a nós criminólogos ser mais rigorosos, exigentes e não deixar que as políticas criminais se assentem em tão fracos alicerces. Cabe-nos não deixar que se façam este tipo de extrapolações e previsões inusitadas. Cabe-nos ser cautelosos com as palavras e exigir que os outros o sejam. Cabe-nos procurar resolver os problemas para além do que está à superfície, procurando perceber as causas e atuar sobre elas.


A todos os interessados, deixamos aqui uma pequena reportagem elaborada pelo New York Times, que conta com algumas declarações de John Dilulio Jr., e que concretiza de forma excelente tudo o que aqui foi escrito.

*Este artigo foi elaborado tendo como base e ponto de partida a leitura do artigo "Superpredator: The Media Myth That Demonized a Generation of Black Youth", escrito por Carroll Bogert e Lynnell Hancock, e publicado pelo The Marshall Project.


Referências:

 
 
 

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