Será a repressão a melhor forma de gerir manifestações?
- CrimiThink
- 2 de jun. de 2020
- 8 min de leitura
Atualizado: 3 de jun. de 2020
No dia 25 de maio de 2020 em Minneapolis, nos EUA, foi noticiado e divulgado o caso de mais uma morte de um cidadão afroamericano, de seu nome George Floyd, em consequência do uso exacerbado de força por parte de um polícia norte-americano.

Na sequência deste acontecimento acumularam-se por várias cidades os protestos contra a impunidade, brutalidade e o uso indiscriminado de força por parte da polícia junto da comunidade afroamericana. Apesar de a maioria das manifestações ser predominantemente pacífica, os protestos acabaram por tornar-se violentos em Minneapolis quando houve a aproximação à esquadra da polícia onde supostamente os polícias envolvidos no caso trabalhavam, tendo sido atiradas pedras e vandalizados carros da polícia, como relata a CBS Minnesota. A partir deste momento a polícia começou a utilizar meios mais repressivos na contenção da manifestação, tendo utilizado gás-pimenta e granadas de luz e som na tentativa de conter os manifestantes. Desde então os confrontos entre polícia e os manifestantes têm mostrado um pouco por todo o país um crescendo na violência, havendo não só vários relatos de pilhagens a lojas, como também vários relatos do uso indiscriminado de força por parte dos polícias na contenção dos manifestantes, sendo inclusive de lamentar a morte quer de manifestantes, quer de polícias. Além disso, têm sido noticiadas intervenções policiais desnecessariamente violentas junto de repórteres e junto de indivíduos que nem sequer se encontravam envolvidos diretamente nas manifestações.

Face a este cenário, Donald Trump tem procurado esconder-se das manifestações, não tendo ainda sido capaz de expressar uma palavra firme de apaziguamento face à situação. Nas alturas em que achou sensato falar à comunidade, Trump ao invés de contribuir para o acalmar dos ânimos decidiu responder ao crescendo da violência com ameaças, instigando ainda mais um clima já por si quente, tendo inicialmente proferido no Twitter (numa mensagem entretanto já eliminada) que “(...) quando as pilhagens começam, também começam os tiros”, contribuindo não só para o perpetuar dos confrontos como para o crescendo da violência e da desigualdade. Além disso, foi bastante assertivo ao referir que a solução para a violência reside em “medidas mais duras”, havendo colocado à disposição o exército americano no auxílio das forças de polícia na contenção das manifestações e responsabilizando os governadores pelos atos de violência que têm ocorrido nos diversos estados, sendo bastante crítico da suavidade da sua atuação e reforçando a ideia de políticas de "law and order". Como se isto não fosse suficientemente preocupante, o facto de Trump ter abortado o programa de reforma policial iniciado por Obama e que, entre outras medidas, visava garantir uma maior aproximação das polícias à comunidade, uma menor discricionariedade na atuação da polícia e uma redução da brutalidade policial só veio exacerbar a revolta dos que sentem a injustiça racial vivida no sistema de justiça criminal americano.
Perante tal clima de volatilidade, violência, brutalidade e discriminação a grande questão que se coloca é, será que a melhor solução reside em medidas mais violentas na contenção dos manifestantes?
Infelizmente, este tipo de situações não são novidade nos EUA, e se há ilação que podemos retirar é que o país ainda não aprendeu com os seus erros. Tem sido recorrente que, perante manifestações contra o racismo institucional nos EUA, a polícia atue de forma repressiva, colocando todo o seu arsenal à sua disposição. E em todos os casos isto tem tido efeitos nefastos. Vejam-se as manifestações após o caso do homicídio de Rodney King, em Los Angeles, em 1992, ou mesmo, mais recentemente, no caso do homicídio de Michael Brown, em 2014, em Ferguson e da morte de Freddie Gray, em 2015, em Baltimore. Não só a polícia se torna incapaz de conter insubordinações, como vê a sua legitimidade cair por terra quando faz uso da força e aparece em cenários de manifestações com equipamento militar.
A evidência [1][2][3][4] tem demonstrado que quando a polícia se apresenta com equipamentos anti-motins a mensagem que passa é bastante clara:
“Estamos prontos para o combate”
refere Edward Maguire, professor de Criminologia e Justiça Criminal da Universidade Estadual do Arizona. O recurso a este tipo de equipamento deve ser de ultima ratio, no entanto, este tem sido o tipo de resposta primária da parte da polícia. E o que tem acontecido é que protestos eminentemente pacíficos têm vindo a degenerar num loop de violência entre manifestantes e polícia que vai escalando à medida que a tensão e os sentimentos de injustiça e raiva por parte dos manifestantes aumentam. O que começam por ser esforços preventivos por parte da polícia acabam por ter o efeito adverso. O uso de força por parte da polícia simplesmente não resulta porque é desproporcional a este tipo de situações e, a ser utilizada, deve ser sempre a mínima necessária para restituir as coisas à normalidade.

Este aspeto é ainda mais problemático tendo em conta que a situação que originou a manifestação envolve diretamente a polícia. Ou seja, as manifestações são realizadas num clima de insurreição contra a polícia, em que muitos dos manifestantes vêm a polícia como o inimigo. Deste modo, o mínimo recurso à força e violência por parte da polícia vai ser condição suficiente para originar a revolta dos manifestantes que, face à falta de respeito pelo seu protesto e sentindo-se ameaçados pelo seu direito constitucional de manifestar, vão encontrar na violência a solução para restaurar a ordem que foi perturbada pelos próprios agentes do estado.
Mas se isto não funciona qual será a melhor forma de intervir perante estas situações e evitar a escalada da violência?
Aquilo que a maioria dos investigadores e alguns polícias tem referido é que tem de haver uma gestão negocial. Este tipo de modelo exigiria que os polícias se reunissem com antecedência com os manifestantes, planeando em conjunto os horários, locais e atividades que aconteceriam e delineando as regras que deveriam ser cumpridas pelos manifestantes. No entanto, isto é praticamente impossível em situações como esta, em que há uma maior espontaneidade e em que a polícia é a principal causadora dos protestos.
Uma das medidas propostas por Nassauer (2019) passa pela comunicação clara e extensiva entre os manifestantes e a polícia. Este tipo de comunicação aumenta a confiança na polícia e impede que sejam espalhados rumores e hajam interpretações erróneas sobre as intenções de qualquer uma das partes. Este tipo de medidas exigiria que a polícia alocasse meios próprios para efetuar estas comunicações através de sistemas altifalantes, devidamente visíveis e identificados, transmitindo informações aos manifestantes de forma calma e comedida sobre os acontecimentos que estavam a ocorrer. Estes indivíduos poderiam estar devidamente assinalados com roupas adequadas a estas funções, em vez da tradicional roupa de polícia ou equipamento anti-motim, procurando acalmar os ânimos e não enviar sinais de confronto. Neste sentido, a comunicação com os manifestantes pode ser essencial mesmo nos casos em que os protestos evoluem para pilhagens e atos de vandalismo, sendo que a polícia deve procurar alertar e explicar aos manifestantes o porquê de esse tipo de comportamentos não ser aceitável.
Outra medida que deve ser tida em conta nestes contextos está relacionada com a individualidade de cada agente policial. Edward Maguire salienta que os polícias devem estar preparados fisicamente e psicologicamente para as possíveis situações que vão encontrar. Eventualmente irão ser provocados, insultados e levados ao limite. No entanto, os polícias devem reconhecer que, caso sintam que não conseguem lidar com estas situações de forma pacífica, devem procurar retirar-se das situações. É impossível garantir a justeza na atuação se o polícia não estiver em condições para tal. Isto implica que também haja um trabalho da parte dos superiores na vigilância deste tipo de situações, devendo intervir quando sentirem que algo não está bem.

Outro aspeto fundamental é evitar ao máximo as detenções, mas estar preparado para as realizar quando necessário. No caso em concreto fomos observando que alguns casos de desobediência civil levaram a detenções, muitas vezes sem qualquer tipo de contexto sob os motivos. Pior ainda, este tipo de detenções foram sendo realizadas de forma desproporcional entre brancos e negros. Por estes motivos as detenções devem ser reservadas para os casos em que existem atos criminais violentos, tendo não só de haver a explicação por parte da polícia do porquê da detenção como o reconhecimento da norma legal que se encontra a ser violada e a uniformidade de procedimentos. Porque apesar de estas medidas serem vistas de forma impopular, é possível colocá-las em prática de forma justa e sem manchar a perceção dos manifestantes em relação à polícia.
Em todas estas medidas o que está subjacente é que a interpretação que se retira das interações entre a polícia e os manifestantes podem conduzir a comportamentos violentos, logo, é fundamental favorecer as dinâmicas emocionais que evitem a escalada da violência.
À primeira vista estas medidas podem parecer utópicas. Infelizmente o verdadeiro motivo das manifestações tem sido ocultado pelo caos e a destruição iniciados por alguns indivíduos que têm procurado tirar aproveitamento da situação de instabilidade. No entanto é preciso não esquecer o que está aqui realmente em causa. A comunidade não confia nas autoridades porque as autoridades não têm atuado de igual modo em relação a brancos e a negros, latinos e outras minorias étnicas. Portanto, este é um processo que é feito de etapas. Se inicialmente a polícia não tem em conta as especificidades da situação e decide atuar conforme os seus protocolos então vai estar a criar oportunidades para que estes atos de vandalização floresçam. Aqui o grande problema encontra-se relacionado com a resistência por parte das polícias em adotarem estas estratégias. Há uma cultura policial que é difícil de mudar e que tem oferecido resistência, muito pelo facto de olharem para estas medidas como demasiado soft e potencialmente perigosas para os agentes. Estas racionalizações parecem injustificadas. O facto de se evitar a confrontação e a violência tornam estas situações, na verdade, mais seguras para todos. Além do mais, promovem a confiança no trabalho da polícia. E, embora não seja tão noticiado, a verdade é que existem bons exemplos da forma como a polícia tem encarado as manifestações. Isto vai resolver todos os problemas? Muito provavelmente não, no entanto, vai contribuir para que não haja a escalada de violência que se tem verificado.

David Couper, ex-chefe da Polícia de Madison e defensor de um modelo de intervenção baseado sobretudo na comunicação, refere ao The Marshall Project que o principal problema é:
“this whole attitude of, ‘We keep order because we kick ass, and it’s us against them.’ (...) We've got to root those people out and say, ‘Look, this is the job that we expect. This is how a democracy is policed. If you can't buy into it. I'm sorry. You just have to find another job.’”
Ou seja, o policiamento num estado democrático e o poder do Estado deve ser balanceado tendo em conta os direitos fundamentais de cada indivíduo. O poder não pode estar concentrado numa classe que lhe faz uso do seu bom grado. O policiamento num estado democrático não existe apenas para manter a ordem, mas também para assegurar que os direitos fundamentais dos cidadãos são garantidos e protegidos. E os polícias que não entenderem esta forma de fazer policiamento não merecem o seu estatuto.
Os aspetos mais simples podem fazer toda a diferença quando se lida com este tipo de situações. Neste sentido, o mínimo que a polícia deve fazer é reconhecer a importância das manifestações e procurar envolver-se junto da comunidade não só em tempos de crise, mas em todas as situações. Uma boa forma de o fazer é prestando homenagem às vítimas, reconhecendo os seus próprios erros e reconhecendo a necessidade de mudança.
A legitimidade da polícia é uma condição essencial para que a instituição seja reconhecida e respeitada. Na maioria das situações as pessoas obedecem à polícia e cumprem com as regras porque existe um alinhamento moral e um clima de cooperação entre os cidadãos e os órgãos policiais. A principal determinante da legitimidade da polícia é a justeza dos seus procedimentos, sendo que a legitimidade é das variáveis mais importantes na vontade do público em obedecer à lei, cooperar e empoderar a polícia (Sunshine e Tyler, 2003).
Deste modo, a principal tarefa da polícia americana neste momento é demonstrar o porquê de não serem o inimigo da comunidade. Mais do que nunca se impõe que haja uma reflexão interna relativamente à forma como o sistema policial se estrutura e se delimita de influências externas. Mais do que nunca a polícia se deve demarcar do poder político e refletir se pretende acabar com a violência ou perpetuá-la. Pois o grande problema não está na forma como as pessoas se manifestam e exprimem as suas preocupações sobre o racismo institucionalizado nos EUA. O grande problema está no sistema judicial que teima em não identificar os seus problemas, aprender com os seus erros e a perceber que, no fim, a violência sempre acabará por gerar violência.

Comentários