O quão psicopatas são os psicopatas do cinema?
- CrimiThink
- 10 de jul. de 2020
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A psicopatia é um dos conceitos psicológicos mais fascinantes e entusiasmantes de se estudar, no entanto, é também um dos que evoca mais mal-entendidos. A própria comunidade científica ainda debate entre si sobre a sua etiologia, o que deve ser considerado ou não psicopatia e como deve ser vista, se como um construto homogéneo ou como subgrupos abrangentes de indivíduos com características clínicas diferenciadas (Skeem, Polaschek, Patrick & Lilienfeld, 2011).

No seio da comunidade, os psicopatas tendem a ser vistos como profundamente diferentes do resto das pessoas e invariavelmente perigosos. Por exemplo, a figura do psicopata tende a emergir prontamente no caso de serial killers como Ted Bundy. No entanto, e apesar de a psicopatia ser fortemente preditiva de um comportamento violento e antissocial, a psicopatia pode ocorrer na ausência de qualquer envolvimento criminal, sendo que vários indivíduos psicopatas não têm histórico de violência (Lilienfeld, 1994).
Outro aspeto comumente referido no discurso popular é a ideia de que os psicopatas são indivíduos altamente inteligentes. No entanto, esta associação não parece ser suportada, não havendo evidência robusta a sustentar esta hipótese (e.g., Spironelli, Segré, Stegagno, & Angrilli, 2014; Watts et al., 2016).
Além disso, a psicopatia tende a ser comummente confundida com a psicose, sendo comum, perante casos mais mediáticos, como o de Charles Manson, associar a presença de pensamentos psicóticos como sinónimo de psicopatia. Apesar de em certos casos poderem coexistir, ao contrário dos indivíduos psicóticos, os psicopatas são geralmente racionais sendo que, os que cometem crimes, quase sempre percebem que cometeram um crime, apesar da sua aparente incapacidade de reconhecer a gravidade do seu comportamento (Skeem et al., 2011).
Esta conceção da psicopatia acaba por ser influenciada pelo modo como os media, mais especificamente, os filmes, tendem a retratar os psicopatas.
A principal preocupação pelo modo como os psicopatas tendem a ser retratados popularmente prende-se com as decisões que têm de ser tomadas no âmbito judicial. Existem evidências de que os psicopatas tendem a ser vistos de forma muito mais negativa em tribunal quando comparados com ofensores com outras patologias mentais ou ofensores de alto risco (e.g., Blais & Forth, 2014; Edens, Colwell, Desforges & Fernandez, 2005; Guy & Edens, 2003), sendo muito mais suscetíveis de lhes verem ser atribuídas penas mais severas quando são rotulados como psicopatas (Lieberman & Krauss, 2009). Ora, isto pode ser particularmente problemático se o(s) jurado(s) possuir algo tipo de estereótipo ou conceção prévia que derive da forma como os media tendem a retratar os psicopatas e que o leve a crer que está realmente perante um indivíduo com traços psicopáticos, podendo entrar em conflito com o diagnóstico realizado por especialistas. Além disso, pode haver um aproveitamento do rótulo de psicopata por parte da defesa do ofendido como forma de justificar a necessidade de condenação ou de uma pena agravada (Edens et al., 2005).
Ora, tendo em conta as discrepâncias que tendem a existir na forma como o cinema retrata estes indivíduos alguns autores têm-se preocupado em analisar esta questão.
Com base numa seleção de 126 filmes internacionais realizados entre 1915 e 2010, Leistedt & Linkowski (2014) verificaram que nos filmes realizados até 2000 os psicopatas:
tendem a ser caracterizados como altamente inteligentes;
a ter uma preferência por estímulos intelectuais (e.g., música, arte);
uma atitude um tanto vaidosa e elegante;
prestígio ou uma carreira bem-sucedida;
uma atitude calma, calculista e autocontrolada;
e uma capacidade irreal e excecional de matar pessoas.
Já os filmes realizados após 2000 tendem a representar os psicopatas como:
mais humanos e vulneráveis;
com evidentes fraquezas;
mais caracterizados pelo núcleo de características da psicopatia, como a falta de empatia e a frieza emocional, ao invés de um comportamento marcadamente disfuncional e caracterizado por atitudes quase sobre-humanas.
De entre os “psicopatas” mais famosos no cinema, os autores verificaram que personagens como Norman Bates, interpretada por Anthony Perkins no filme “Psycho” (1960), e a personagem Travis Bickel, interpretada por Robert De Niro no filme “Taxi Driver” (1976), são na verdade indivíduos psicóticos, desconectados da realidade e com ideações delirantes (Leistedt & Linkowski, 2014). Outro exemplo enigmático e caricurante de um psicopata é a personagem Dr. Hannibal Lecter, interpretada por Anthony Hopkins no filme “The Silence of The Lambs” (1991), que representa um indivíduo excecionalmente inteligente, astuto, sofisticado e erudito, mas ao mesmo tempo um canibal sanguinário que retira prazer e satisfação das atrocidades que comete (Leistedt & Linkowski, 2014).

Noutro estudo, Davis, Frederick & Corcoran (2020) procuraram perceber efetivamente o quão psicopatas são realmente estas personagens, tendo procurado estabelecer um diagnóstico com recurso àquela que é uma das medidas padrão mais conhecidas, utilizadas e validadas na operacionalização do construto da psicopatia, a Psychopathic Checklist – Revised (PCL-R; Hare, 2003). A PCL-R é uma escala de 20 itens criada por Robert Hare e que é composta por um modelo estrutural de dois fatores e quatro facetas, que tem sido amplamente aceite pela comunidade científica ao longo de vários anos.
O Fator 1 da PCL-R (interpessoal/afetivo) inclui as características afetivas e interpessoais da psicopatia, tais como, do ponto de vista afetivo, a falta de empatia, a frieza emocional, o afeto superficial, a falta de remorsos ou culpa e défices em assumir a responsabilidade, e do ponto de vista interpessoal, o charme superficial, a elevada autoestima e grandiosidade, a mentira patológica e o estilo manipulador. O Fator 2 (estilo de vida/antissocial) abrange características relacionadas com o estilo de vida, como a necessidade de estimulação, a impulsividade, a irresponsabilidade, a falta de objetivos realistas e a orientação parasítica, e as características antissociais traduzem-se num baixo autocontrolo, problemas comportamentais precoces, delinquência juvenil, revogação da liberdade condicional e a versatilidade criminal.
Ora, deste modo, Davis et al. (2020) acabaram por selecionar 22 filmes realizados nos EUA entre 2007 e 2016, com 24 personagens a serem inicialmente identificadas como psicopatas ou sociopatas. Das personagens analisadas apenas 6 obtiveram uma pontuação de 30 ou mais na PCL-R, o necessário para ser considerado psicopata, sendo elas a personagem Ray, interpretada por David Harbour no filme “A Walk Among the Tombstones” (2014), a personagem Colin, interpretada por Idris Elba no filme “No Good Deed” (2014), a personagem The Joker, interpretada por Heath Ledger no filme “The Dark Knight” (2008), a personagem John Ryder, interpretada por Sean Bean no filme “The Hitcher” (2007), a personagem Krug, interpretada por Garret Dillahunt no filme “The Last House on the Left” (2009) e a personagem Efriam Diveroli interpretada por Jonah Hill em “War Dogs” (2016).

De salientar que, as pontuações no Fator 2 da PCL-R para 19 personagens não puderam ser calculados devido à falta de informações no filme para pontuar dimensões relacionadas, por exemplo, com problemas na infância, delinquência juvenil e histórico de revogação de liberdade condicional. Isto sugere que o retrato cinematográfico do psicopata tende a salientar as características interpessoais e afetivas, deixando de parte os critérios mais comportamentais da psicopatia, o que pode transmitir erradamente a ideia de que o comportamento é a uma vertente mais negligenciável da psicopatia e que é mais importante focar as características do Fator 1 da PCL-R (Davis et al., 2020). Tal como no estudo anterior, Davis et al. (2020) verificaram ainda que a maioria das personagens analisadas se envolveram em comportamentos criminais e violentos, sendo que uma grande parte destes comportamentos era perpetrado contra estranhos. Isto pode transmitir a ideia errada de que o risco de sermos vítimas de um psicopata é maior do que realmente pensamos, sendo importante controlar a sua influência na tomada de decisões em contexto judicial.
Ou seja, em suma aquilo que se verifica é que apesar de uns filmes retratarem de melhor forma aquilo que a psicopatia representa, a verdade é que a maioria dos filmes ainda exibe uma caracterização fictícia da mesma. Como é evidente, a grande maioria dos realizadores não se preocupará em perceber tecnicamente quais as características-chave do psicopata, sendo-lhe de maior interesse e vantagem criar uma personagem que possa ser cativante ao público. No entanto, e sem o propósito de abordar questões relacionadas sobre o modo como os realizadores devem elaborar o enredo, criar e desenvolver as suas personagens, o público deverá ser capaz de manter o seu espírito crítico e perceber que as representações fictícias dos psicopatas são isso mesmo, ficção. Como já foi visto, isso não quer dizer que não haja boas representações da psicopatia no cinema. Apenas significa que na prática clínica, em contexto real, a grande maioria dos psicopatas difere consideravelmente dos psicopatas do cinema, podendo ser prejudicial em vários contextos equiparar a realidade à ficção.
Referências Bibliográficas:
Blais, J., & Forth, A. E. (2014). Potential labeling effects: Influence of psychopathy diagnosis, defendant age, and defendant gender on mock jurors' decisions.Psychology, Crime & Law,20(2), 116-134.
Davis, K. M., Frederick, A., & Corcoran, A. (2020). Using the psychopathy checklist to examine cinematic portrayals of psychopaths.Aggression and Violent Behavior, 101424.
Edens, J. F., Colwell, L. H., Desforges, D. M., & Fernandez, K. (2005). The impact of mental health evidence on support for capital punishment: Are defendants labeled psychopathic considered more deserving of death?.Behavioral sciences & the law,23(5), 603-625.
Guy, L. S., & Edens, J. F. (2003). Juror decision‐making in a mock sexually violent predator trial: Gender differences in the impact of divergent types of expert testimony.Behavioral Sciences & the Law,21(2), 215-237.
Hare, R. D. (2003). Hare Psychopathy Checklist (PCL-R). MHS.
Leistedt, S. J., & Linkowski, P. (2014). Psychopathy and the cinema: fact or fiction?.Journal of forensic sciences,59(1), 167-174.
Lieberman, J. D., & Krauss, D. A. (2009). The effects of labelling, expert testimony, and information processing mode on juror decisions in SVP civil commitment trials.Journal of Investigative Psychology and Offender Profiling,6(1), 25-41.
Lilienfeld, S. O. (1994). Conceptual problems in the assessment of psychopathy. Clinical Psychology Review, 14, 17–38. doi:10.1016/0272-7358(94)90046-9
Skeem, J. L., Polaschek, D. L., Patrick, C. J., & Lilienfeld, S. O. (2011). Psychopathic personality: Bridging the gap between scientific evidence and public policy.Psychological Science in the Public Interest,12(3), 95-162.
Spironelli, C., Segrè, D., Stegagno, L., & Angrilli, A. (2014). Intelligence and psychopathy: a correlational study on insane female offenders.Psychological medicine,44(1), 111-116.
Watts, A. L., Salekin, R. T., Harrison, N., Clark, A., Waldman, I. D., Vitacco, M. J., & Lilienfeld, S. O. (2016). Psychopathy: Relations with three conceptions of intelligence.Personality Disorders: Theory, Research, and Treatment,7(3), 269.
Infelizmente, psicopata na linguagem popular tornou-se meramente um termo aplicado discricionariamente a qualquer pessoa que cometeu um delito ou ato que a opinião pública considere macabro ou anómalo, numa tentativa de se distanciarem o quanto possível desse indivíduo. Dessa forma, a pessoa em questão é vista como algo para lá de humano, "algo diferente de mim".
O discurso midiático e até alguns autores são culpados pelo mau uso do termo com o objectivo de cativar e chocar os espectadores e leitores.